domingo, julho 25, 2010

Muitas mortes

Isto agora morre-se pouco, sabe. Pelo menos esta semana tem estado paradito. Depois às vezes é enterros todos os dias, às vezes aos três e aos quatro no mêmo dia. É o que lhe digo, a morte é como a lua, também tem as suas fases. As pessoas gostam de ir deste mundo acompanhadas. Tem semanas que nã paro, outras assim, em que não há nada pra fazer. Pra que estou eu a abrir estas covas, atão? Nã, estas são pra mim, atã nã vê que estes terrenos aqui já nã pertencem ao cemitério? Isto é uma espécie de jazigo de família, que o mê pai herdou do mê avô, pois, isto a profissão passou de pais pra filhos, acho que já o mê tetravô era covêro. Tenho aqui a família toda enterrada, e um dia sou eu, pois, é para isso que estou a abrir as covas. Tantas? Pois atão, é o que lhe digo, isto de estar aqui estes anos todos a abrir covas pós outros fez-me olhar a morte com outros olhos. É o que lhe digo, e olhe que nã invento: já vi munto boa gente descer à terra, e ódepois andam por aí a passearem-se pelas campas, assim a dar os bons dias a este e àquele. Nã acredita? Lembra-se do Dr. Amaro? Sim, faleceu vai fazer este Dezembro um ano, Deus o tenha. Lembra-se que ele andava sempre de cigarrito na boca? Pois, ele lá dizer dizia-nos a nós pra deixar de fumar, mas ele que era ele nunca deixou, mesmo doente e tudo. A minha patroa é que se ria, ainda o vais enterrar a ele primêro, e nã se enganou, pois não. Agora ando a tratar-me lá com outro médico, nunca mais fumei, nã senhor, e sabe o que fez o magana de um cabrão? Está a ver este maço? SG ventil, era o que ele fumava, pois foi, foi ele que mo deu! No outro dia, quando se andava para aqui a passear, de cigarrito na boca, o magana, tou-lhe a dizer, vi com estes olhos que a terra há-de comer. E nã é só ele, qual quê, há noites em que este cemitério parece uma garraiada. Uma animação que nã lhe digo nem lhe conto. É por isso que estou a abrir estas covas todas, pois, é pra mim, que o fim está perto, sabe, ê sinto, nã digo nada à minha patroa pra nã a apoquentar, mas sei, já nem força tenho pra segurar a enxada, isto cada movimento é um castigo, parece que o corpo me pesa toneladas. Pois, estava a dizer-lhe, são pra mim, que ê cá nã quero andar para aí a apoquentar a minha patroa depois de morto, que ainda lhe dá uma coisa se me vê assim naquele estado. Pois, têm de ser estas todas, que é para enterrar os mês corpos todos. Isto a gente nã tem só um corpo, que nada! A gente se quer morrer bem mortos temos de nos enterrar várias vezes. É o que lhe digo. Já vi muita alma penada por aí. Nã senhor, tem de ser assim: uma para cada corpo. Estou já a preparar tudo, que assim nã dou trabalho a ninguém. Quando morrer quero descansar, nã quero andar por aí a penar; pra penas já me basta a vida.

1 comentário:

CLS disse...

Muito engraçado,este texto! Inspirado em alguém que conheces?Beijinhos.


(O meu mail é celop@hotmail.com)