sábado, abril 23, 2011

E ainda estou para saber se isto aconteceu mesmo, ou se foi tudo imaginação minha

O anjo 
(republish)


Devia ter-me deixado dormir, sem dar por isso, sentada na cadeira com o apoio das costas virado para a frente, as mãos e a cabeça apoiadas nele, as pernas uma para cada lado. No quarto, minúsculo, apenas a cadeira, uma mesinha de cabeceira, e a marquesa onde o meu filho dormia um sono profundo e tranquilo, depois do inferno das dores e daquela corrida para o hospital. Adormecera ainda na ambulância, embrulhado num cobertor, depois de ter conseguido sorrir quando a paramédica lhe ofereceu um balão feito com uma daquelas luvas que eles usam, onde pintou uns olhos e uma boca sorridente por baixo da crista formada pelos dedos, pequeninos, que se espetavam da bola de ar em que se transformara a luva depois de cheia. Quando o passaram da maca para a cama, ainda acordou com o choro todo inteiro dentro dos pulmões, mas o cansaço acabou por vencê-lo, derrotado. Agora dormia e eu mal me aguentava em pé, o cansaço, a noite quase em claro, tudo acumulado nos meus ombros como um fardo muito pesado. Sentia os olhos a fecharem-se, e só me apetecia estender, nem que fosse no chão, e dormir. A única coisa que havia ali era a cadeira, e um banco, mas esse não oferecia serventia nenhuma. Acabei por me sentar, naquela posição incómoda, as costas dobradas para a frente, numa curva, mas nem sentia o esforço dos músculos, nem a tensão, nada. Só o sono a invadir-me a consciência de mansinho, pesando nas pestanas e estendendo-se pelos caminhos ocultos e cheios de névoa entre os olhos e as planícies extensas e exaustas do estado de vigília.
Fechei os olhos, e quando os abri, talvez desperta pelo ruído da porta, ele estava ali. Vestia uma bata azul clara, portanto devia ser médico, ou enfermeiro, naquele momento não saberia dizê-lo, tinha passado nesse dia por tantas batas de cores diferentes que não sabia identificá-las. No quarto a luz ascendia vagarosa de uma lâmpada oculta algures na parede, apenas uma luz de presença, fraca, o que fazia com que as sombras se avolumassem e a obscuridade nos afagasse as pálpebras numa carícia suave. Abri os olhos, levantando a cabeça, que me pesava toneladas. Por um segundo, estava naquele limbo dos sonhos, em que não sabemos bem onde estamos, mas que rapidamente dá lugar à consciência das coordenadas dos acontecimentos. Ele entrou e sentou-se no banco, ao meu lado, como se fosse o próprio silêncio. Devo ter olhado para ele com a vista nublada, perdida ainda no território sonâmbulo do sons, mas ele sorria. Depois começou a falar, e a sua voz era um sussurro. Pedia desculpa, era só para tomar algumas notas. Trazia na mão uma capa daquelas duras, onde se prendem folhas de papel A4 pressionando uma mola no topo, e na outra mão segurava uma caneta. Eu dei por mim a responder àquele sorriso que de súbito me invadia de paz e serenidade. Quando relembro esse momento, às vezes, tenho dúvidas se não estaria a sonhar. Provavelmente não acordei, dormi sentada na cadeira, e aquela visita não aconteceu realmente. Ele falava baixinho, fazendo perguntas, às quais eu respondia automaticamente, quase sem pensar. Estava no limite das minhas forças, cansada e cheia de sono, e aquela voz escorria pela minha face como se os dedos da minha mãe me afagassem ao de leve, numa carícia muda, água morna. Os olhos eram doces, macios, e o sorriso sincero, meigo, próximo. Os traços do rosto eram delicados, como o são alguns dos rostos asiáticos, os olhos rasgados, a pele quase imberbe. Era um homem, sem dúvida, um homem bastante novo, pareceu-me, mas o rosto tinha qualquer coisa de feminino, uma leve androginia que lhe empretava um ar etéreo, quase irreal, como se o seu corpo pairasse acima do chão. Um anjo, mascarado de médico, com a bata azul e o estetoscópio pendurado ao pescoço, apenas para disfarçar. A dada altura explicou-me que devia elevar a perna do miúdo quando estivesse deitado, para que a circulação ficasse facilitada, e para exemplificar segurou-lhe na perna adormecida, o que fez com que o gaiato quase despertasse, o sono subitamente assaltado por soluços que depressa se tornariam num choro lancinante não fosse ele baixar-lhe rapidamente a perna, com aqueles gestos delicados e a voz pedindo desculpas, que magicamente devolveram o sono dos justos ao rosto tranquilo do meu filho. Estou certa de que noutra circunstância lhe teria saltado ao pescoço, numa fúria de protecção maternal em ebulição; porém, inexplicavelmente, estava ali, sorrindo, como se não fosse nada, certa de que aquela criatura não poderia trazer mal nenhum a ninguém, certa de que tudo o que aquelas mãos tocassem permaneceria abençoado para sempre. Depois de mais meia dúzia de palavras, ele foi-se embora, exactamente como veio - levemente, com o mesmo sorriso nos lábios, o murmúrio da sua voz a ecoar pelas paredes e a demorar-se no meu ouvido interno. Eu, acho, voltei a adormecer, os meus ombros subitamente mais leves, a angústia adormecida no peito por magia, como um bebé que tivesse sido embalado pelo sussurro daquela voz. Adormeci, de certeza, mais uns segundos, minutos, até ser acordada pela luz, uma faca a espetar-se-me nos olhos, e a enfermeira a entrar no quarto, como uma avalanche, para me anunciar que a ambulância já tinha chegado, aquela que nos ia levar de novo a casa. Depois, dois homens, um deles pegou no meu filho ao colo, interrompendo-lhe bruscamente o sono e acordando-lhe todos os demónios das dores e do choro - o choro dele de encontro às paredes dos corredores do hospital, eu quase a correr para lhes acompanhar o passo, ainda estremunhada, incrédula, perplexa, o sono puxado e preso atrás dos olhos, como um elástico muito apertado. Ainda olhei em volta, à procura dele, do anjo, o meu anjo, mas não o vi em parte nenhuma. Havia, decerto, regressado ao seu reino de silêncio e magia.

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