quinta-feira, maio 26, 2011

Água

A água bebia-se a ela mesma, voraz. A água era tanta, e às tantas o corpo já não era sólido, era líquido e escorria por todos os poros, exausta loucura de quem canta sem voz, um mar de palavras em rebentação furiosa na boca, e a boca larga escavada na terra, uma garganta funda sem medo, sem fundo, o corpo a cair e a gravidade uma dor na nuca, debaixo do chuveiro a água cai em torrente, pelo ralo vai a largura do mundo, para o fundo, para o fundo da memória. E nos olhos acorda o clamor, as vozes erguem-se, genuínas, líquidas, profunda transformação, erosão, transpiração, línguas pálidas e gastas, já sem fôlego, secas, cheias de sede, sem água o corpo mirra e as ideias tornam-se leves, etéreas, pequenos flocos a pairar acima das nuvens, acima das almas, acima dos mares gelados que são as nuvens brancas, coladas à terra, rentes à água.

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