Ela sabe, mas não quer saber.
Tem uma pasta cheia de textos antigos. Coisas que escreveu sem saber.
Quando falamos sem saber, é quando dizemos a verdade. Ainda que nem nós próprios saibamos o que é a verdade.
O que ela queria, agora, era poder arrumar sem precisar de esquecer. Arrumar mesmo, guardar, com dor e carinho, o que lhe pertence, e o resto, deitar fora.
Parece tão fácil. Quase uma brincadeira de crianças. Separar o lixo: as embalagens, os plásticos, os resíduos tóxicos.
Não é capaz. As coisas pegam-se umas às outras, colam-se-lhe à pele, e é impossível separar-se delas.
Sabe que são esses restos de coisas podres que não a deixam mover. Andar para a frente. Ser feliz. Apenas ser. Não deixam, porque lhe prendem os braços. A mente. Não deixam espaço para mais nada.
Nos textos, nas palavras antigas que escreveu noutra vida, quando ainda não sabia, encontra agora o que antes não via, não conseguia ver, mas estava lá, sempre esteve.
Como é que se pode arrumar, cortar aos bocados? Como é que se pode dividir em duas, em três, cinco, mil, um milhão, exponencial sem fim, será que um átomo de dor dói menos do que uma dor inteira? Partir a dor em bocadinhos para deixar de senti-la? Porque é que, perante uma dor, a nossa única e primeira preocupação é anulá-la? Reduzi-la a zero? Porque é que não procuramos compreender? Porquê? O que está o corpo a tentar dizer-nos?
O corpo guarda tudo. Em bruto. Sem divisões. No corpo podemos encontrar tudo. O corpo é uma casa cheia de quartos, uns mais iluminados, outros nas sombras, alguns sem portas nem janelas. Para entrarmos termos de escavar, esburacar as paredes.
Como se escavam grutas na pele, sem dores?
Podemos ficar à porta, claro. Ou sentar no sofá da sala. Acender a televisão e distrair-nos com a vida alheia.
Como quem sabe, mas não quer saber. Ou prefere não saber.
1 comentário:
So true.
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