domingo, junho 09, 2013

Uma forma de silêncio

As pessoas acham que o crochet é uma arte, e elogiam-lhe a habilidade. Estão enganadas, porém. O crochet não é uma arte, é antes uma forma de silêncio. Uma forma de transformar a perda de tempo em algo útil e agradável ao toque e à vista. O crochet pode ser também uma forma de masoquismo - porque os dedos chegam a doer tanto que às vezes se torna insuportável. Só ao princípio. Com a prática passa. E se for uma prática diária a dor acaba por ser esquecida, incorporada ao trabalho dos músculos. Exactamente como as mágoas que se calam, para que não manchem a brancura  do fio de algodão. Eu aprendi a "arte" do crochet aos 6 anos, acho. A minha avó que me ensinou. Naquela altura usava-se a linha coração. Aprendi a juntar malhas ao mesmo tempo que aprendi a silenciar o coração. Na garganta as palavras morriam, engolidas à pressa, e ao passarem para a corrente sanguínea, no processo digestivo, acabavam enchendo o coração de não ditos, de gritos, que lentamente desciam aos dedos em movimentos sincopados e precisos, um aberto, dois fechados, três abertos, três fechados. E assim se tecem as mágoas, uma a uma, com persistência, muita paciência, e algum carinho. No fim, as palavras, as mágoas, as lágrimas, estão lá todas. Silenciosas, umas a seguir às outras, saídas do delírio dos dedos. Cordão de silêncio. Malhas de silêncio. Seca. Paus. Uns, apanhados debaixo das árvores; outros, quase do tamanho de troncos. Árvores de silêncio. Folhas, mãos em ramos ao vento. Silêncio que tudo ouve. Silêncio que tudo cala. E tece, apenas isso. Mais nada.

1 comentário:

Maria de Fátima disse...

hoje, publiquei estetexto aqui https://www.facebook.com/alpcarrilho?fref=nf numa amiga que faz crochet, e como ela o faz!
obrigada, Gabriela!